O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequada em um meio, cuja qualidade lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, e tem a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações futuras e presentes” (Princípio 1 da Declaração Universal do Meio Ambiente, da 1º Conferência Mundial Sobre o Meio Ambiente da Organização das Nações Unidas).
“Ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante deles é o reinvidicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído” (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992).
1 – Introdução
Nos países em desenvolvimento a idéia de que as questões ambientais somente devem ser tratadas como prioridade quando a problemática econômica e social tiver sido solucionada é especialmente propagada. Contudo, essa concepção não resiste a um exame mais aprofundado, pois se de um lado o descaso ambiental normalmente acentua ainda mais a pobreza nesses países, de outro a maioria dos países desenvolvidos não desenvolve políticas efetivas em relação ao meio ambiente. Sendo assim, o objetivo deste artigo é trabalhar de uma forma introdutória a relação entre o direito fundamental ao meio ecologicamente equilibrado constitucionalmente assegurado, a ordem econômica e a desigualdade social, enfocando a perspectiva da justiça ambiental.
2 – Desenvolvimento
Sempre que emerge a temática meio ambiente, o desemprego e a miséria são utilizados como argumento por aqueles que não vêem urgência em defendê-lo. Segundo essa lógica, enquanto persistirem problemas sociais como a fome, a falta de moradia e a violência a preocupação ambiental será um luxo. A não ser para países como a Alemanha, os Estados Unidos e a Suécia, tal preocupação se mostraria inteiramente fora de propósito, tendo em vista a realidade econômica dos países em desenvolvimento. Por trás desse raciocínio está a idéia de que é preciso aumentar o bolo e dividi-lo, conforme apregoavam os desenvolvimentistas brasileiros do período militar, para somente depois se cuidar do meio ambiente.
Contudo, essa argumentação se mostra equivocada em diversos aspectos. Além do mais, ela é sumamente perigosa na medida em que retira a atenção do foco principal do problema.
Em primeiro lugar, é importante destacar que os países mais ricos são os maiores degradadores do planeta, por conta do elevado padrão de consumo que demanda uma extração de recursos ambientais cada vez mais rápida e maior. Uma prova disso é que Estados Unidos, França e Inglaterra são os maiores emissores de gases estufa, os causadores do aquecimento global. Além disso, em parte os problemas ambientais das nações mais necessitadas são causados pelos países ricos, que alocam para lá seus resíduos e suas fábricas de maior potencial danoso.
Em segundo lugar, o crescimento descontrolado da população e a globalização, processo de integração das economias e das sociedades dos diversos países com fortes efeitos sobre os sistemas produtivos e sobre os hábitos de consumo das populações, fizeram com que o ser humano exaurisse a Terra. De acordo com o relatório divulgado pelo World Watch Institute o ser humano ultrapassou em vinte por cento os limites ecológicos planetários, estimando que se o estilo de vida do restante do mundo se equiparasse ao dos quinze países mais ricos seriam necessários pelo menos mais um planeta e meio. Com efeito, é possível que o bolo de que os desenvolvimentistas falam não possa mais crescer muito, o que tornaria a sua redistribuição mais complicada.
Em terceiro lugar, a continuidade da raça humana e até do planeta parece estar em xeque, tamanhos são os problemas ambientais da atualidade: escassez de água potável, falta de saneamento básico, contaminação dos rios e do lençol freático, aquecimento geral do planeta, buraco na camada de ozônio, desertificação, desmatamento, extinção de espécies, falta de tratamento dos resíduos industriais, acúmulo de lixo urbano, vazamento de petróleo etc. A crença na inesgotabilidade desses recursos e na dominação do ser humano sobre a natureza, paralelamente à ânsia desmedida pelo lucro, parece ser a responsável pela degradação do planeta. Isso significa que não existe assunto mais urgente do que a problemática ambiental, já que disso depende a própria sobrevivência.
Com efeito, por conta desse contexto a problemática ambiental se destaca como uma das mais gravosas da atualidade, visto que nos modelos de desenvolvimento econômico vigentes é predominantemente o completo desequilíbrio entre a defesa do meio ambiente e o crescimento econômico. Tendo em vista a relação direta entre a degradação ambiental e a ordem econômica, na medida em que é a expansão do capitalismo industrial que faz com que os recursos ambientais sejam extraídos da natureza em um ritmo cada vez mais acelerado, tornou-se necessário o surgimento de um novo modelo de desenvolvimento.
Trata-se do desenvolvimento sustentável, um modelo de desenvolvimento que procura equacionar o crescimento econômico, o bem-estar social e a proteção do meio ambiente, com ênfase tanto nas gerações presentes quanto nas futuras. A formulação dessa conceituação implicava o reconhecimento de que as forças de mercado abandonadas a uma livre dinâmica não garantiriam a manutenção do meio ambiente, impondo um paradigma novo ao modelo de produção e consumo tradicional. O termo desenvolvimento sustentável foi utilizado pela primeira vez em 1980 por um organismo privado de pesquisa, a Aliança Mundial para a Natureza (UICN), e foi consagrado em 1987 quando a ex-ministra norueguesa Gro Harlem Brundtland o utilizou em um informe feito para a Organização das Nações Unidas (ONU), em que dizia da imprescindibilidade e da urgência da adoção desse conceito.
A Constituição Federal de 1988, além de ter elevado o meio ambiente à condição de direito fundamental, ao reconhecê-lo como essencial à qualidade de vida, chegando inclusive a impor às pessoas e instituições o dever de lutar em favor da natureza, no art. 225, também transformou o meio ambiente em um princípio da ordem econômica, passando a sujeitar os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência ao critério ambiental quando dispõe no art. 170 que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observando entre outros princípios a defesa do meio ambiente. Mas a primeira norma a tipificar essa idéia foi a de Lei nº 6.938/81 ao rezar em seu art. 4º que a Política Nacional do Meio Ambiente objetivará a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico.
De fato, a problemática ambiental não pode ser compreendida senão como uma questão econômica. O modelo econômico tradicional não considera o meio ambiente, baseando-se apenas em ganhos com a produtividade e ignorando que nenhuma atividade econômica se viabilizará se a natureza fornecedora dos recursos materiais e energéticos estiver comprometida. O mercado mundial atribui facilmente valor monetário aos produtos e serviços tangíveis, mas os bens intangíveis relacionados aos recursos naturais não são valorizados por não poderem ser substituídos a preços competitivos, e como o que não é valorizado não é preservado, isso leva ao desperdício e à degradação de bens ambientais como o ar e a água.
Contudo, esse não é o único aspecto envolvendo a ordem econômica e o meio ambiente. Um outro, certamente menos observado pela maioria dos ecologistas e economistas, diz respeito ao desequilíbrio na divisão dos benefícios e dos malefícios gerados pelo modelo econômico de desenvolvimento tradicional.
Tudo aquilo que representa progresso, a exemplo das construções, das embarcações, das aeronaves, dos automóveis, dos aparelhos eletrônicos e dos sistemas de serviços hospitalares e de comunicações, entre outras maravilhas da modernidade, é fruto do modelo de desenvolvimento econômico tradicional. Considerada a face benéfica do modelo econômico de desenvolvimento tradicional, esse quadro é apontado como paradigma para os países em desenvolvimento.
Por outro lado, o processo de produção dos bens e serviços de consumo, por ser feito, seja direta ou indiretamente, com base nos recursos naturais, gera uma série de implicações negativas que normalmente podem ser traduzidas como resíduos. Trata-se das sucatas abandonadas, dos efluentes, das poeiras, das embalagens, dos papéis, dos vasilhames, dos entulhos da construção civil e dos gases que saem das chaminés, das minas e das fazendas – além dos resíduos hospitalares, químicos e nucleares, que são os mais perigosos. A sociedade moderna é atualmente considerada como a civilização do lixo devido ao excesso na geração de resíduos, que são produzidos tanto na produção e na circulação quanto no próprio consumo dos bens e serviços. Essa é a parte negativa do progresso, que pode ser apontada como a responsável pela crise ambiental planetária.
O problema é que o descompasso entre o grupo que tem acesso aos bens e serviços de consumo, originados com base na extração direta ou indireta dos recursos naturais, e o grupo que sofre com a degradação ao meio ambiente é inversamente desproporcional. Forma-se assim um apartheidambiental: de um lado está a parcela da sociedade que tira de inúmeras formas proveito do meio ambiente, por ter a propriedade dos bens naturais e por poder adquirir os produtos e serviços, ao passo que do outro restou a parcela que, além de não conseguir tal acesso, ainda é obrigada a arcar com o passivo ambiental alheio.
A pobreza dificulta o acesso à informação, implicando na falta de conscientização ambiental e jurídica, ao mesmo tempo em que impede a obtenção por parte dos prejudicados de uma infra-estrutura de precaução ou de reparação contra os efeitos da degradação. Na proximidade das comunidades citadas ficam os lixões, as indústrias poluidoras e os depósitos de rejeitos, incluindo os de resíduos tóxicos e radioativos. A contaminação da água, do ar e do solo e a extração desordenada do patrimônio natural ocorrem com facilidade, já que nem a mídia nem o Poder Público demonstram preocupação. Paralelamente nesses lugares as medidas de recuperação do meio ambiente, como o reflorestamento ou a descontaminação de um rio, raramente acontecem. É uma triste ironia que os “moradores do depósito de lixo da sociedade” não tenham direito aos bens que a natureza proporciona, sejam industrializados ou não, oferecidos pelo mercado. Na realidade, a parte que coube a esses “severinos” no latifúndio do planeta, além dos sete palmos de terra contaminada, foi a alta incidência de doenças como asma, alergia e câncer e a completa falta de condições sanitárias para trabalhar, estudar e viver.
O quadro ainda é mais grave se for levado em consideração que o meio ambiente é classificado pelo caput do art. 225 do texto constitucional como bem de uso comum do povo. Ademais, da mesma maneira que os direitos civis e sociais, trata-se de um direito fundamental cuja fundamentação se encontra no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III da Constituição Federal).
A situação da grande maioria da população brasileira reflete essa realidade de discriminação ambiental, pois é a classe menos favorecida economicamente que normalmente mora próximo aos lixões e às áreas contaminadas. Ademais, é essa classe que sofre mais diretamente com as chuvas, com as secas e com o desabamento de morros, porque além de não ter acesso à informações preventivas não têm poder político para se fazer valer. O meio ambiente reflete as relações de uma sociedade em que a democracia existe somente como um princípio jurídico a nortear a elaboração das leis.
Sendo assim, o crescimento econômico não pode sensatamente ser considerado um fim em si mesmo, tendo de estar relacionado sobretudo com a melhora da qualidade de vida e a continuidade da própria vida. Afinal, seja sob o aspecto filosófico ou jurídico, a vida é o maior de todos os valores existentes.
Como uma forma de se contrapor a essa realidade surge nos Estados Unidos no início da década de oitenta o Movimento por Justiça Ambiental, que prega que os benefícios e malefícios oriundos do aproveitamento dos recursos naturais têm de ser equanimente divididos pelos mais variados setores da população. Tudo começou quando a instalação de um aterro químico no condado predominantemente negro de Afton, em Warry Country , na Carolina do Norte, gerou protestos e mais de quinhentas prisões. A partir daí começaram os estudos a fim de saber da importância do critério racial para a alocação dos depósitos de resíduos perigosos, tendo os resultados sido assustadores: os depósitos se encontravam predominantemente em comunidades afro-americanas apesar de estas constituírem menos de um quinto da população.
Assim, procurando coadunar ao movimento ecologista e sindicalista o problema do preconceito racial e dos direitos civis o sociólogo Robert Bullard cunhou expressão “racismo ambiental”, que significa justamente o direcionamento intencional ou não dos efeitos da degradação para determinadas comunidades raciais ou étnicas. Afora os negros, que são as principais vítimas desse problema, há também os índios, os latinos e os ciganos e as minorias pobres de uma maneira geral, o que significa que no racismo ambiental o aspecto social se mescla ao racial e étnico.
A idéia fundamental por detrás do Movimento por Justiça Ambiental é a de que, do mesmo modo que os benefícios da aplicação concreta do desenvolvimento sustentável, assim como os bens ambientais postos à disposição para fruição racional, devem alcançar uniformemente todos os membros da sociedade, o ônus decorrente do progresso, especialmente se realizado (como ainda é hoje) de forma irresponsável, devem ser preferencialmente eliminados, senão suportados igualmente por toda a coletividade – e não discriminadamente por minorias de pouca ou nenhuma representatividade política ou financeira, por questões de discriminação racial, étnica ou econômica.
Em cada país os problemas ambientais e sociais assumem uma feição diferente, e no Brasil o que se sobressai nessa inversamente proporcional divisão dos benefícios e malefícios do modelo tradicional de desenvolvimento econômico é o aspecto social, pois como afirma Henri Acselrad a distribuição de poder nas unidades de produção reflete a distribuição da riqueza, mas está inversamente relacionada à distribuição do risco ambiental. Sendo próprio do capitalismo segregar as pessoas de acordo com a condição social, pois a riqueza é o componente primário de poder, é natural que as pessoas de posse morem em lugares ambientalmente confortantes enquanto os desprovidos em lugares degradados – por serem mais baratos. Os que moram nas encostas de morro e beira de rios e próximo aos lixões, às fábricas e lugares contaminados são invariavelmente os desprovidos socialmente. A correlação entre indicadores de pobreza e doenças associadas à poluição é patente, visto que os pobres estão mais sujeitos aos esgotos à céu aberto, aos lançamentos de rejeitos sólidos e emissões líquidas e gasosas. Entre as causas disso enumera-se: disponibilidade de terras baratas; falta de oposição da população local por fraqueza organizativa e carência de recursos políticos; falta de mobilidade espacial das minorias em razão da discriminação residencial; e sub-representação das minorias nas agências governamentais responsáveis por decisões de localização dos rejeitos.
Logo, predominando na realidade brasileira o critério social dentro desse assunto, o termo mais adequado a ser utilizado é discriminação ambiental. É que a terminologia racismo não deve ser aplicada ao caso porque se prende à idéia da existência de raças superiores, e o termo preconceito também é inexato porque essa idéia demandaria uma intencionalidade que na maioria das vezes não acontece na problemática ambiental estudada.
Essa apropriação privada dos recursos ambientais coletivos, e conseqüente imposição dos riscos ambientais a uma parcela da população, consiste em uma afronta direta ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado da mesma maneira que à isonomia apregoada pelo texto constitucional em relação a todos os cidadãos, já que a Constituição Federal dispõe no art. 5º que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes e que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.
3 - Conclusão
Portanto, fica evidente que não se pode dissociar em hipótese alguma os problemas ambientais das questões sociais, sendo inclusive essa a razão pela qual a Constituição Federal enquadrou o meio ambiente no rol dos direitos sociais. E como a degradação ambiental, além de gerar pobreza, incide muito mais diretamente sobre as camadas mais pobres da população, para ocorrer uma verdadeira promoção da igualdade é necessário que haja um acesso equânime aos recursos naturais seja na forma in natura ou quando industrializados. O desenvolvimento econômico somente será realmente sustentável se houver em paralelo a promoção de justiça ambiental, que é a não exclusão de nenhum ser humano do aproveitamento desse patrimônio comum, que é o Planeta Terra.
4- Bibliografia – Referênráficias
ACSELRAD, Henri, PÁDUA, José Augusto de e HERCULANO, Selene (organizadores). Justiça ambiental e cidadania. São Paulo: Delume Lumará, 2004.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BOFF, Leonardo. Ecologia — grito da terra, grito dos oprimidos. 3ª edição. São Paulo: Ática, 1999.
BUARQUE, Cristovam. A desordem do progresso – o fim da era dos economistas e a construção do futuro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
BULLARD, Robert. Dumping in Dixie : race, class and environmental quality. Boulder: Westview Press, 1990.
OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de e GUIMARÃES, Flávio Romero. Direito, meio ambiente e cidadania. São Paulo: Madras, 2004.
SANTOS JUNIOR, Humberto Adami e LOURES, Flávia Tavares Rocha. O papel do advogado na aplicação da justiça ambiental e no combate ao racismo ambiental. Endereço eletrônico: www.direito.com. Acessado em 30 de setembro de 2003.
[1] Talden Farias é advogado, mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e professor da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas da Paraíba (FACISA) e da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
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